domingo, 28 de abril de 2013

A morte do orelhão


Abaixo transcrevo a crônica do jornalista Paulo Briguet, publicada na edição impressa do Jornal de Londrina em sua edição de 26 e abril de 2013.  
A morte do orelhão
26 de Abril de 2013 

Este cronista vem hoje cumprir o doloroso dever de informar que o orelhão morreu. Não estou dizendo de ouvir falar; fui testemunha. Caminhando pelo Calçadão de Londrina, encontrei a vítima sem sentidos. Tentei a respiração boca a boca – sem resultado. O aparelho já não falava, já não ouvia, já não tocava. Havia ultrapassado a linha que separa vida e morte. Silencioso e inanimado, o pobre orelhão jazia a céu aberto, vítima da estupidez humana.
Que sonhos sonhará o orelhão que já não vive? Freud afirmava que os sonhos expressam desejos reprimidos. No caso do orelhão, impulsos reprimidos. Talvez ele sonhe com ligações que não pôde fazer ao longo de sua biografia metálica; talvez ele descanse em um eterno sinal de ocupado; talvez ele converse com a voz da moça que repete: “Diga o seu número e a cidade de onde está falando”. Talvez. Era uma vez.
Os primeiros cristãos chamavam-se uns aos outros de “viventes”. Para designar o falecido orelhão da esquina, usarei um neologismo: ele é um desvivente. Ao ver o seu fone pendurado no ar, lembrei-me dos “inimigos do povo” que o regime iraniano às vezes enforca em praça pública. Horrível imagem, que logo substituí pelo premiado comercial da Telesp em 1981 sobre a morte dos orelhões por obra de vândalos. “Todos os dias, 20 orelhões morrem na nossa cidade. Nenhum deles por morte natural.”
Sou do tempo em que as fichas caíam e ninguém tinha celular. Não consigo entender o que se passa na cabeça de um ser vivente momentos antes de vandalizar um telefone público. Deve ser uma onda de ódio e ressentimento capaz de queimar a raiz de alma! Há uma linha que conduz do vândalo de orelhões à moça que mostra os peitos e agride o bispo; e dessa moça ao terrorista de Boston; e do terrorista de Boston ao homem-bomba; e do homem-bomba ao guarda do campo de concentração nazista ou comunista.
No fundo, o orelhão é nosso irmão. O tempo e os inimigos desejam que fiquemos incomunicáveis, numa eterna linha ocupada...

Paulo Briguet - jornalista

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